terça-feira, 26 de maio de 2015

Por que eu espero que você me odeie

Postado por Mãe do André às 10:11

Bom dia, meu filho. Há tanto tempo que eu não escrevo, né? E há muito tempo que queria falar com você sobre esse assunto. Sim, eu espero que um dia você me odeie. Mas antes de explicar esse título aparentemente absurdo, é preciso deixar duas coisas bem claras.

Primeira: eu tenho histórico de morder a própria língua, filho. E isso não é motivo de vergonha para mim, principalmente agora, nessa minha fase de reinvenção. Vou só dar alguns exemplos. Quando conheci seu pai, tinha acabado de terminar um relacionamento intenso e conturbado e havia prometido a mim mesma que passaria o verão “no rock” e não namorar tão cedo. Um mês depois, já estava "namorando" o seu pai, assustada e incrédula. Também disse que nunca me casaria – e no próximo mês farei 8 anos de casada. Também já cheguei a dizer que jamais engravidaria. Bem, essa eu não preciso nem explicar! A verdade, filho, é que nossas certezas mudam com o tempo e eu chamo isso de evoluir. Não me entenda mal, não sou uma folha ao vento, sem opinião própria. Ao contrário, quem me conhece diria até que tenho personalidade e opiniões fortes demais. Eu só não tenho problemas em rever minhas convicções e mudar de ideia quando realmente me convenço de que estava errada.

A segunda coisa que preciso deixar clara é que eu sei que é fácil demais falar de maternidade e de criação de filhos quando ainda não se é mãe ou quando o filho ainda está contido no útero. Sei que minhas convicções hoje vão ser bem diferentes daquelas que terei quando você estiver em meus braços. E também não acho que o que é certo ou funciona para mim seja o certo ou o melhor para outros pais e mães. Apenas uso esse período que antecede a sua chegada para algumas reflexões. Dito tudo isso, divido com você uma das minhas poucas certezas atuais sobre a maternidade/paternidade: um pai ou uma mãe que não ouve do filho um “eu te odeio” pelo menos uma vez na vida não está fazendo seu trabalho direito. As variações “você é o/a pior pai/mãe do mundo” ou “eu queria ser filho de fulano e não seu” também servem. E eu explico o porquê.

Filho, você vai nascer egocêntrico, egoísta, achando que o mundo gira em torno do seu umbigo e que todas as pessoas a sua volta existem para satisfazer as suas necessidades. E tudo bem. Não se preocupe, é assim que seu cérebro se desenvolve e não há nada de errado com você. Isso não diz muita coisa sobre sua personalidade ou caráter. Faz parte do desenvolvimento normal de uma criança. O que não pode é você se tornar um adulto que continua acreditando nisso. E é aí que eu e seu pai entramos.

Sabe, filho, eu não acredito que a função dos pais seja fazer os filhos felizes. Não me entenda mal, o que eu mais quero no mundo é que você seja muito, muito feliz. Mas eu acredito que, para isso, vou ter que ser muito "chata" para você. Eu acredito, filho, que a minha função como mãe – e esse é o meu maior sonho e objetivo – é fazer de você um homem de bem. Um homem honesto, com caráter, que não se vê melhor do que qualquer outra criatura desse planeta. Eu quero que você seja um homem que respeite todas as pessoas ao seu redor – independentemente de sexo, raça, cor, orientação sexual ou convicção religiosa – e que entenda que viver em sociedade significa respeitar algumas regras em nome da boa convivência. Isso significa não poder fazer tudo o que você quiser, na hora em que quiser, do jeito que quiser. Quero, filho, que você seja bom. Que entenda que as melhores escolhas para você podem ser as piores para outras pessoas, que tudo depende de um contexto de vida que você não tem capacidade de julgar. Quero que você não seja indiferente à dor alheia, que entenda que objetos são apenas objetos (e que não definem o seu valor ou o valor das outras pessoas) e que saiba que mesmo quem é aparentemente mais simples e ignorante pode ter muito a ensinar.

Ou seja, eu acredito que uma das minhas funções na vida, filho, é frustrar você. É tirar os seus olhos do seu mundinho e fazer você olhar ao redor. É ensinar regras e limites e cobrar o cumprimento deles todos os dias. É mostrar que sua vontade não é soberana e negá-la para que a vontade de outros seja respeitada. É limitar suas ações para que você não passe por cima de ninguém. É, algumas vezes, deixar você triste para mostrar que nem tudo pode ser do seu jeito todas as vezes. E eu espero fazer tudo isso porque eu já te amo, André. E porque eu realmente acredito que isso fará de você um adulto verdadeiramente feliz. Não vai ser fácil – nem para mim, nem para você. E eu não tenho a menor garantia que eu vá conseguir fazer tudo isso. Na verdade, a única garantia é que vá errar muitas vezes, deixando você confuso e ainda mais bravo. Além disso, mesmo que eu fizesse tudo certo, você ainda tem o livre-arbítrio para me ignorar, jogar fora todos esses valores e se tornar um adulto bem diferente do que eu gostaria. Mas aí já é uma decisão sua, algo que eu não sou capaz de controlar.

O que eu posso fazer é me esforçar ao máximo para viver de acordo com o que eu acredito e tentar “não pegar leve” na sua infância. Fazer de tudo para tentar passar esses valores. Você não vai entender no início, filho (talvez nem mesmo no futuro!). Quando for criança, será normal você não enxergar o todo, “the big picture” como dizem os americanos, e vai parecer que tudo o que eu e seu pai fazemos tem o único propósito de irritar você. Pode até parecer que a gente gosta de ver você sofrer, que a gente se diverte com a sua infelicidade ou que a gente não ama você de verdade porque fazemos o oposto do que deixaria você feliz naquele momento. Mas saiba que, provavelmente, estaremos sofrendo mais do que você, chorando junto (mas escondidos) e repetindo para nós mesmos que a felicidade que você quer é transitória, temporária, mas a que nós queremos para você é permanente e verdadeira.

Por isso, eu vou rezar e trabalhar todos os dias para dar conta dessa missão e conseguir criar você dentro desses valores e dessa filosofia. E, quando perceber a raiva em seu olhar, vou recolher meu coração em pedaços na certeza de que estou no caminho certo. Assim, rezando para que você um dia me entenda e que possa me amar profundamente como eu já te amo, eu espero, sinceramente, que pelo menos uma vez na vida você me odeie.


Vitória, 19 de março de 2015 – 30 semanas

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2 comentários no blog:

Anônimo disse...

Hmm, meu comentário anterior foi com uma conta que eu não sei se vai aparecer o meu nome, kkkk.

Mas como eu havia dito, o título do texto me chamou a atenção e eu corri pra ler. Muita reflexão. Ficou sensacional. Parabéns!!

Grande beijo,
Thiago Valadares

Mãe do André disse...

Só agora que consegui ler seu comentário, pode? Muito obrigada pelos elogios carinhosos! Fico toda boba e empolgada para escrever mais! :)

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