
Primeira: eu tenho histórico de morder a própria
língua, filho. E isso não é motivo de vergonha para mim,
principalmente agora, nessa minha fase de reinvenção. Vou só dar
alguns exemplos. Quando conheci seu pai, tinha acabado de
terminar um relacionamento intenso e conturbado e havia prometido a
mim mesma que passaria o verão “no rock” e não namorar tão cedo. Um
mês depois, já estava "namorando" o seu pai, assustada e incrédula.
Também disse que nunca me casaria – e no próximo mês farei 8
anos de casada. Também já cheguei a dizer que jamais engravidaria.
Bem, essa eu não preciso nem explicar! A verdade, filho, é que
nossas certezas mudam com o tempo e eu chamo isso de evoluir. Não me
entenda mal, não sou uma folha ao vento, sem opinião própria. Ao
contrário, quem me conhece diria até que tenho personalidade e
opiniões fortes demais. Eu só não tenho problemas em rever minhas
convicções e mudar de ideia quando realmente me convenço de que
estava errada.
A
segunda coisa que preciso deixar clara é que eu sei que é fácil
demais falar de maternidade e de criação de filhos quando ainda não
se é mãe ou quando o filho ainda está contido no útero. Sei que
minhas convicções hoje vão ser bem diferentes daquelas que terei
quando você estiver em meus braços. E também não acho que o que é
certo ou funciona para mim seja o certo ou o melhor para outros pais
e mães. Apenas uso esse período que antecede a sua chegada para algumas reflexões. Dito tudo isso, divido com você uma das minhas
poucas certezas atuais sobre a maternidade/paternidade: um pai ou uma
mãe que não ouve do filho um “eu te odeio” pelo menos uma vez
na vida não está fazendo seu trabalho direito. As variações “você
é o/a pior pai/mãe do mundo” ou “eu queria ser filho de fulano
e não seu” também servem. E eu explico o porquê.
Filho,
você vai nascer egocêntrico, egoísta, achando que o mundo gira em
torno do seu umbigo e que todas as pessoas a sua volta existem para satisfazer
as suas necessidades. E tudo bem. Não se preocupe, é assim que seu
cérebro se desenvolve e não há nada de errado com você. Isso não
diz muita coisa sobre sua personalidade ou caráter. Faz parte do
desenvolvimento normal de uma criança. O que não pode é você se
tornar um adulto que continua acreditando nisso. E é aí que eu e
seu pai entramos.
Sabe,
filho, eu não acredito que a função dos pais seja fazer os filhos
felizes. Não me entenda mal, o que eu mais quero no mundo é que
você seja muito, muito feliz. Mas eu acredito que, para isso, vou
ter que ser muito "chata" para você. Eu acredito, filho, que a minha
função como mãe – e esse é o meu maior sonho e objetivo – é
fazer de você um homem de bem. Um homem honesto, com caráter, que
não se vê melhor do que qualquer outra criatura desse planeta. Eu
quero que você seja um homem que respeite todas as pessoas ao seu
redor – independentemente de sexo, raça, cor, orientação sexual
ou convicção religiosa – e que entenda que viver em sociedade
significa respeitar algumas regras em nome da boa convivência. Isso
significa não poder fazer tudo o que você quiser, na hora em que
quiser, do jeito que quiser. Quero, filho, que você seja bom. Que
entenda que as melhores escolhas para você podem ser as piores para
outras pessoas, que tudo depende de um contexto de vida que você não
tem capacidade de julgar. Quero que você não seja indiferente à
dor alheia, que entenda que objetos são apenas objetos (e que não
definem o seu valor ou o valor das outras pessoas) e que saiba que
mesmo quem é aparentemente mais simples e ignorante pode ter
muito a ensinar.
Ou
seja, eu acredito que uma das minhas funções na vida, filho, é frustrar você. É
tirar os seus olhos do seu mundinho e fazer você olhar ao redor. É
ensinar regras e limites e cobrar o cumprimento deles todos os dias. É
mostrar que sua vontade não é soberana e negá-la para que a
vontade de outros seja respeitada. É limitar suas ações para que
você não passe por cima de ninguém. É, algumas vezes, deixar você
triste para mostrar que nem tudo pode ser do seu jeito
todas as vezes. E eu espero fazer tudo isso porque eu já te amo,
André. E porque eu realmente acredito que isso fará de você um
adulto verdadeiramente feliz. Não vai ser fácil – nem para mim,
nem para você. E eu não tenho a menor garantia que eu vá conseguir
fazer tudo isso. Na verdade, a única garantia é que vá errar muitas vezes, deixando você confuso e ainda mais bravo. Além disso,
mesmo que eu fizesse tudo certo, você ainda tem o livre-arbítrio
para me ignorar, jogar fora todos esses valores e se tornar um adulto
bem diferente do que eu gostaria. Mas aí já é uma decisão sua,
algo que eu não sou capaz de controlar.
O
que eu posso fazer é me esforçar ao máximo para viver de acordo
com o que eu acredito e tentar “não pegar leve” na sua infância.
Fazer de tudo para tentar passar esses valores. Você não vai
entender no início, filho (talvez nem mesmo no futuro!). Quando
for criança, será normal você não enxergar o todo, “the big
picture” como dizem os americanos, e vai parecer que tudo o que eu
e seu pai fazemos tem o único propósito de irritar você. Pode até
parecer que a gente gosta de ver você sofrer, que a gente se diverte
com a sua infelicidade ou que a gente não ama você de verdade porque
fazemos o oposto do que deixaria você feliz naquele momento. Mas saiba
que, provavelmente, estaremos sofrendo mais do que você, chorando
junto (mas escondidos) e repetindo para nós mesmos que a felicidade
que você quer é transitória, temporária, mas a que nós queremos
para você é permanente e verdadeira.
Por
isso, eu vou rezar e trabalhar todos os dias para dar conta dessa
missão e conseguir criar você dentro desses valores e dessa
filosofia. E, quando perceber a raiva em seu olhar, vou recolher meu
coração em pedaços na certeza de que estou no caminho certo. Assim, rezando para que você um dia me entenda e que possa me amar
profundamente como eu já te amo, eu espero, sinceramente, que pelo menos
uma vez na vida você me odeie.
Vitória, 19 de março de 2015 – 30 semanas
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2 comentários no blog:
Hmm, meu comentário anterior foi com uma conta que eu não sei se vai aparecer o meu nome, kkkk.
Mas como eu havia dito, o título do texto me chamou a atenção e eu corri pra ler. Muita reflexão. Ficou sensacional. Parabéns!!
Grande beijo,
Thiago Valadares
Só agora que consegui ler seu comentário, pode? Muito obrigada pelos elogios carinhosos! Fico toda boba e empolgada para escrever mais! :)
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