domingo, 29 de novembro de 2015

O nosso lado bicho

Postado por Mãe do André às 00:00
Sabe, filho, eu sempre defendi que todos nós temos um lado bicho que não podemos negar e do qual não podemos fugir. Ou pelo menos não deveríamos tentar fugir. Claro que não somos somente instinto, hormônios e fisiologia, mas é ingenuidade não acreditar nessa influência. E se eu já tinha essa certeza antes, a gravidez e a sua chegada se tornaram provas irrefutáveis desse nosso pedaço animal. E do quanto abraçá-lo pode ser o máximo!

Poucas vezes na vida eu tive tão pouco controle sobre o meu corpo quanto na gravidez. Às vezes, era ele que me dominava. Parecíamos até duas entidades diferentes,especialmente no primeiro trimestre. Não importava o quanto eu queria ir à academia, ou o quanto eu precisava ir ao supermercado ou arrumar alguma coisa. Se meu corpo quisesse dormir, eu dormia!!! A sensação era que alguém havia me dopado. Eu tentava abrir os olhos, mas eles pesavam uma tonelada. Tentava levantar e meu corpo simplesmente não obedecia. Foram muitas semanas em que o celular ficava com a soneca ligada por horas! Era ridículo! O alarme tocava a cada cinco minutos por até duas ou três horas!!! Mamãe agradeceu muito o fato de não ter que trabalhar de manhã, filho. Tenho certeza que teria perdido o emprego! No início, também não importava se eu estava com fome ou morrendo de vontade de comer um doce. O corpo não queria. Simplesmente não descia! A garganta se fechava sozinha, com vida própria e vontades diferentes das minhas. Simples assim. O estômago roncava e nem assim eu conseguia engolir alguma coisa.

Mas o mais legal do lado bicho que emerge na gravidez são os superpoderes maternos que a gente ganha. É incrível, filho. Eu me sentia com superpoderes mutantes! Sua mãe sempre foi muito alérgica e meu nariz só servia para harmonia paisagística do rosto. Cheiro para mim era tudo igual e apenas o prelúdio de uma crise de espirros. Perfume, desinfetante, incenso: depois de 1 minuto virava tudo uma coisa só. Mas não na gravidez. Eu era capaz de saber o que o colega estava comendo do outro lado da redação. Sabia como o feijão do self-service havia sido temperado só de colocá-lo no prato. Era bizarro! Eu parecia um cão farejador. Isso para o desespero do seu pai, que precisou ficar sem usar perfume por 9 meses. Um cheirinho lá longe parecia que estava sendo esfregado no meu nariz. Superpoder mutante!

Aí você nasceu (e eu nem vou falar do parto porque, infelizmente, não vivi essa experiência que, dizem, é ainda mais animal). E apareceu o superpoder da audição. Consigo ouvir você suspirar lá no seu quarto, mesmo estando em outro cômodo e com a TV ou o ventilador ligados. Qualquer barulhinho seu liga meu modo alerta e meu coração dispara, como se você estivesse correndo risco de vida! Uma ME.... LECA! Principalmente porque no prédio ao lado do nosso tem um outro bebê, talvez uns dois ou três meses mais velho que você. E a quantidade de vezes que eu tive um alarme falso, acordando enquanto você dormia tranquilamente, parece até sacanagem.

E os seios que latejam cinco minutos antes de você chorar para mamar? Sem contar que é incrível ver meu corpo produzindo leite e dando a você tudo o que você precisa para crescer e se desenvolver. Como neste momento eu sou apenas um mamífero como qualquer outro. E é incrível como nossos corpos conversam: você muda o tempo e a frequência das mamadas e em menos de dois dias (tá, às vezes um pouquinho mais), os meus seios passam a produzir a quantidade exata, adaptada àquela nova necessidade sua. Às vezes é meio assustador, você querendo mamar mais e meu seio murcho. Dá um medo. Dois dias se passam e lá está ele duro e transbordando de leite bem naquele horário "extra" que você resolveu acrescentar à nossa rotina.

Também é impressionante acompanhar como você é todo o seu lado bicho neste momento da sua vida. Você se desenvolve ainda sem muita consciência, fazendo instintivamente os movimentos que precisa para fortalecer braços, pernas e pescoço; procurando meu seio na hora da fome; se adaptando às novidades do ambiente. É incrível o que o nosso instinto é capaz de fazer. E aceitar essa natureza deixa tudo mais fácil. Deixar-se levar por aquela intuição, aprender a ouvir o que o corpo exige, dar a ele o que ele precisa e aceitar agir sem qualquer justificativa racional... Enfim, abraçar cada ato primitivo do nosso lado bicho deixa a rotina mais leve, faz seu choro parar mais rápido, faz eu me cansar menos. É incrível (sei que já disse isso algumas vezes, mas não existe palavra melhor!). Muitas vezes nosso instinto não faz nenhum sentido, mas dá certo. Simplesmente dá certo!

Somos bichos. Somos mamíferos. É um fato. E não precisamos ter vergonha disso. E abraçar nosso lado animal, respeitá-lo, parece nos tornar mais humanos. A Natureza é sábia, podemos ouvi-la. Não é à toa que chamo você, filho, de filhotinho da mamãe. Nas nossas necessidades básicas, somos exatamente como uma fêmea e seu filhote: cheiro, instinto e ação visceral. Negar tudo isso é abrir mão de uma força poderosa. E ouvir o nosso corpo é o único jeito de controlá-lo, isto é, de não se reduzir a apenas um animal irracional e agir apenas por instinto. É uma parceria. Raciocínio e irracionalidade. E sabe o que eu acho? Para gente viver bem, para viver melhor e plenamente, a gente precisa de um pouquinho dos dois.



São  Pedro de Rates, 26 de setembro de 2015 (3 meses e 27 dias); Vitória, 5 de outubro de 2015 (4 meses e 6 dias)

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1 comentários no blog:

Isa• disse...

Reconhecer o animal que somos nos torna mais humanos.

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