sexta-feira, 17 de março de 2017

O machismo que já atinge você

Postado por Mãe do André às 21:22
O dia das mulheres já passou, mas as postagens sobre o machismo nosso de cada dia, não (ainda bem!). Então resolvi adiantar a publicação dessa carta escrita na semana passada. ;)

Você com suas  "roupas neutras" e
o seu  "chapéu de menina" (?!!)
É, filho, precisamos falar sobre o machismo. Sou mãe de menino, feminista, num mundo machista que, pelo menos, começou a discutir a igualdade de gênero. Sou mãe de um menino de 1 ano e 9 meses que, mesmo convivendo com pais atentos a essa questão e preocupados em desconstruir alguns padrões, já foi bombardeado pelo machismo. Sim, filho, bombardeado. Diretamente. Pessoalmente. Muitas vezes. Muitas. Muitas mesmo. Antes até de você completar seu primeiro ano de vida.

Sabe, filho, durante muito tempo eu fugi do rótulo "feminista" como o diabo foge da cruz. O que só prova o quanto o machismo está enraizado em nossa vida. Porque eu, assim como muita gente por aí, também não entendia o real sentido dessa palavra. Eu também já achei que o feminismo era simplesmente o oposto do machismo, que se tratava de transformar os homens em inimigos a serem combatidos e defender a superioridade feminina. Não é, filho. Eu sei, eu sei que muitas pessoas ditas feministas só querem inverter a pirâmide do poder e transformar opressores em oprimidos. Mas isso não é feminismo, meu filho. Não é. Acredite na mamãe e, se não quiser apenas confiar na minha palavra, pode estudar um pouquinho antes de continuar a ler esta carta (mas, por favor, leia ciência, não achismos, tá bom?)

Eu espero. Vai lá!
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Então, filho, partindo da premissa básica que homens e mulheres têm a mesma importância numa sociedade, que têm o mesmo potencial realizador, que merecem ter igualdade de direitos e acreditando verdadeiramente que potencialidades e habilidades não são determinadas pela existência de um pênis ou de uma vagina, eu e seu pai colocamos você no mundo. E, olha, já na gravidez vimos que não seria fácil. Porque o mundo que prega tanto o respeito e a igualdade, no fundo, parece não querer de verdade nem um, nem o outro. Vou fazer um parênteses rápido aqui para elogiar seu pai porque se a luta já é difícil com ele, imagina para as mulheres que têm no pai da criança o primeiro obstáculo a ser vencido!! (#forçaamiga) Seu pai entende que a criação dos filhos também é responsabilidade dele, que a casa também é dele (por isso lavar roupa, louça ou qualquer outra atividade doméstica também é função dele), não tem problemas em usar cores tradicionalmente ditas femininas e jamais iria dar escândalo se visse você brincando com uma boneca ou fogãozinho. E mesmo assim...

Para começar, o enxoval. Que ódio eu tenho dessa coisa de azul para meninos e rosa para meninas!!! De estampas de carrinhos para eles, corações e laços para elas. Honestamente, quem teve a ideia ridícula de dividir em gêneros as roupas de um recém-nascido????????? Gente, um bebê de poucos dias (ou meses) só precisa de roupas confortáveis, hipoalergênicas e práticas para os pais. Não importa se é menino ou menina! Tênis, cinto, laços, pulseiras e qualquer outro acessório, para mim, são apenas desperdício de dinheiro e até uma certa maldade com aquela criança que está tentando entender o mundo à sua volta e que não consegue sequer controlar o próprio corpo. Tudo bem se você está indo a uma festinha, numa data importante, e quer fazer uma graça. Mas no dia a dia?? Sem contar as roupas de "mini-adulto" que eu não consigo achar a menor graça. Deixem as crianças serem crianças!! Já basta nós, adultos, usando roupas e sapatos desconfortáveis em nome de uma norma ou um padrão estético.

Mas aí eu entendi o que leva alguns pais a fazerem isso, filho. Eu não sei explicar o porquê, mas me incomodava profundamente quando você era confundido com uma menina. Bobo, né? Ridículo até! Não faz muito sentido, mas incomodava. É irracional. Por que, no fundo, que diferença faz, não é mesmo? Mas eu percebi que não era a única com esse incômodo e que talvez isso leve alguns pais a buscarem um padrão e evitar as dúvidas. Também porque é chato ter que ficar se explicando o tempo todo. Cansa. Mas é importante. Então, eu digo:


"Sim, ele é menino, mas o capacete é rosa porque, além de ele ter herdado da prima, nós não temos problemas com cores. Cor é só uma cor!"

"Sim, ele é menino numa cadeirinha de bicicleta vermelha porque eu ganhei de uma amiga e não vou
De capacete rosa e
cadeirinha vermelha
gastar dinheiro à toa por causa de preconceitos bobos."

"Sim, ele é menino e brinca com qualquer brinquedo porque não é isso que vai definir a sexualidade dele."

E etc, etc, etc

Eu sempre soube que vivia num mundo machista. Mas vivenciar isso chegando até você, na frequência e na força com que chegava, logo nos seus primeiros meses de vida, foi assustador. Chocante. Vou contar só três casos mais marcantes para não parecer que estou exagerando:


1) A SAGA DAS LOJAS DE BEBÊS
Não importa o que a gente vai comprar, André, não importa mesmo, o diálogo SEMPRE vai ser assim:

Nós: - Bom dia. Vocês têm (complete aqui com qualquer produto infantil - QUALQUER!)

Vendedores: - É para menino ou para menina?

Olha, filho, eu até entendo, apesar de não concordar, que me façam essa pergunta quando eu estiver comprando roupas e sapatos. Não concordo mesmo porque eu acho que roupas infantis não deveriam ter gênero. Deveriam ser apenas para crianças. Mas, até aqui, tudo bem. Dá para entender. Agora, me explica POR QUE é preciso saber o sexo da criança na hora de comprar MORDEDOR, ALMOFADA DE AMAMENTAÇÃO OU TESOURA DE UNHAS???? Sim, filho, até para isso existe separação! Não é possível que ninguém veja o quanto isso é bizarro! E quando os vendedores percebem que eu e seu pai não estamos preocupados com isso, a reação é até engraçada, "dá tilt". Eu me lembro de duas vezes que já viraram lendas.

Na primeira, você não devia ter nem 2 meses, eu e seu pai estávamos procurando um protetor de cinto para o bebê conforto. Você vivia dormindo com a cabeça para o lado e o cinto deixava seu rostinho todo marcado. Dava dó, dava para ver que estava desconfortável. Tínhamos ido a várias lojas, tudo em falta. Até que em uma, a vendedora pergunta:

- É para ele? (diz apontando para você - ela já tinha perguntado seu nome e sabia que você era um menino)
- É, sim.
- Infelizmente, os protetores de meninos acabaram todos.
- Mas tem algum?
- De menino, não.
- Mas tem algum aqui na loja?
- Só um, mas é de menina.
- Posso ver?
(vendedora muda por cinco segundos, cheia de rugas na testa):
- Você quer olhar o de menina?
- Sim, queremos, por favor.
Ela entrega, mas reforça:
- Tá vendo? Só tem esse feminino.

Vendedores quando digo que vou
levar o produto "de menina"
Realmente, era uma estampa bem feminina para o padrão: um verde água cheio de florzinhas. Não era algo que eu escolheria nem se você fosse menina. Mas, André, o seu conforto, para mim, sempre virá antes da estética. A função daquele objeto era proteger você do cinto  de segurança e não era algo que se encontrava facilmente. Eu vou preferir priorizar uma cor do que o conforto do meu filho? Não foi preciso nem discutir em voz alta com seu pai para perceber que pensávamos igual, bastou uma troca de olhares:

- Vamos levar. - disse seu pai sem hesitar.

Eu só queria ter uma câmera comigo naquele momento para registrar a cara da vendedora, André. Não há palavras no dicionário para descrever aquela cara de "tela azul" estampada em seu olhar, rs.

Na outra vez, bem pior, foi quando estávamos com uma viagem marcada para a praia e você não tinha nenhum chapéu. Não queríamos boné, mas um chapéu mesmo, para proteger melhor. Só que já era meados de um dezembro bem quente e o estoque já tinha acabado na maioria das lojas. Até que em uma, o diálogo se repetiu:

- Boa tarde, a gente está procurando chapéu para ele, vocês têm? (eu e seu pai, ainda um pouco inocentes, achávamos que apontando para você estávamos indicando o tamanho do chapéu, não o "sexo" dele)

- Ah, infelizmente acabou tudo.

Já estávamos indo embora quando a vendedora explicou:

- Tivemos muita procura este mês, vendemos todos os chapéus de meninos em uma semana.

Eu e seu pai, já espertos, paramos na hora e lembramos da armadilha. Resolvemos reformular a pergunta:

- Mas tem chapéu de menina?
- Tem um.
- Podemos ver?
- O de menina?
- É.

E a mulher traz "o chapéu de menina": um chapéu branco, com listras vermelhas e abas internas azuis!!!!! Nem um laçarote, nem estampas estereotipadas. Nada! Como assim?? Desde quando vermelho também virou cor proibida para meninos?? Compramos o tal chapéu (você tem ele até hoje, pois estava um pouco grande na época). A vendedora achou super estranho.



2) O CARRINHO
Até para evitar um consumismo desnecessário, eu e seu pai decidimos comprar um carrinho usado quando a prima precisou do dela de volta (você tinha uns 5 ou 6 meses). Estava em ótimo estado, mesmo tendo sido usado por dois meninos lindos. Custava um terço do preço da loja. Mas quando eu comecei a sair com você, começou a acontecer algo estranho. As pessoas começaram a se referir a você como "ela" com muita frequência. Perguntavam "Qual o nome dela?"; "Quantos anos ela tem?"

Eu comecei a ficar ofendida (lembra a bobeira que já mencionei lá em cima?). Mas achava estranho porque eu sempre achei você com "cara de homem" e eu não ouvia tanto esse tipo de pergunta quando você estava no bebê conforto (e, eu acho, quanto mais novinhos, mais parecidos são os meninos e as meninas, não é?). Não fazia sentido. E era estranho porque as pessoas nem olhavam para você e muitas vezes já assumiam que você era menina. Passei meses tentando entender esse fenômeno, até que um dia uma senhora no supermercado explicou:

- Qual o nome dela?
- É André.
- Ah, é menino?
- É, sim.
(ela agora se abaixou para olhar para dentro do carrinho)
- Nossa, e ele tem cara de hominho mesmo, né? Desculpa, eu nem olhei direito, só vi o carrinho vermelho e perguntei.

Ahhhhhhh!!! Era o carrinho!! Aparentemente, vermelho é realmente uma outra cor proibida para os
Aos 6 meses, com "roupas
neutras", no "carrinho feminino"
homens. E a senhora continuou:

- ... e como eu olhei muito rápido e ele estava com uma cor de roupa mais neutra, nem pensei antes de perguntar!

Ahhhhhhh!!! (2) A roupa!!! Realmente suas roupas eram, na maioria, brancas, amarelas e verdes. Seus bodies podiam ser usados por meninas sem problemas e até umas roupas herdadas das primas (meninas) você usava. Hoje isso mudou um pouco porque você ganhou muita roupa no último Natal e no seu primeiro aniversário, todas bem "masculinas". Uso todas! Cada centavo economizado conta. E eu sei que ir trocar na loja é só perda de tempo mesmo...


3) O BEBÊ PEGADOR
Você não tinha nem seis meses, André, e eu já tinha ouvido umas 500 vezes o quanto você iria "arrasar corações" ou "ter muitas namoradas" por ser tão lindo ou por ter olhos lindos. Gente, sério??! Sério que falamos de namoradas para bebês quem nem sentam sozinhos ainda? Sério que o elogio é você ser tão bonito que vai deixar garotaSSS (sim, porque "homem que é homem" tem que colecionar mulheres no plural, né?) arrasadas e de corações partidos? Isso lá é elogio?? Machucar alguém é elogio?

Nas primeiras vezes, fiquei tão chocada que nem consegui responder. Mas a situação se repetiu tantas vezes que não me aguentei. Uma vez, um desconhecido na rua veio com voz de idiota, passando a mão no seu cabelo (porque mãe de bebê AMA estranhos passando a mão suja no seu filho - #SQN), e soltou a peróla:

- Nossa, como você é lindo, rapaz!! Vai ter muitas namoradas assim, né?

Filho, eu virei você para mim, fiz mesma voz idiota e, no mesmo tom, soltei:

- Vai nada, né filhão? Por que você vai ter uma única namorada, que você vai amar e respeitar muito, né?

PS: Hoje, só de implicância, já que sou diferentona mesmo, eu ainda completaria "uma namorada ou um NAMORADO, né?"

xxxxxxxxxxx

É difícil, André. É difícil porque até na família e com pessoas ditas feministas você precisa comprar certas brigas e tem que ser a chata. Porque, afinal, "é só um modo de falar", "é só uma brincadeira", e "credo, você leva tudo a sério demais". Levo, filho. Levo mesmo. Levo muito a sério uma cultura que leva à morte dezenas de mulheres todos os dias só porque elas são mulheres. Que mata LGBTs todos os dias só porque eles estão "fora do padrão", que faz com que pessoas trans tenham 10 vezes mais chance de cometer suicídio do que uma pessoa cis. A mesma cultura que fará você carregar um peso enorme, André, para que você nunca chore e para que seja o pegador, o provedor, o musculoso. Não, filho, não precisa ser nada disso. 

Você tem muitos privilégios em sua vida, André. Só por ter nascido homem, branco, de cabelo liso, de classe média alta. Não sabemos ainda se o cabelo continuará assim, afinal o DNA crespo está na família. E também não sabemos qual será a sua orientação sexual (e, desde já, filho, fique sabendo QUE NÃO IMPORTA!! Mesmo que eu não reaja tão bem quanto gostaria.). Mas é fato, filho: você já tem uma série de privilégios por ser quem você é. E como disseram nossos amigos no YouTube, é muito mais fácil empoderar uma menina do que fazer um menino reconhecer seus privilégios e, principalmente, abrir mão deles. Eu me lembro que esse foi um assunto muito discutido com minha psicóloga assim que me vi grávida. Eu nem sabia o seu sexo, mas tinha medo que você fosse uma menina. Eu não me via mãe de menina, justamente por não concordar com o que hoje é definido como feminino.  E quando ela me convence que era bem mais difícil criar um homem neste contexto machista, pois é mais complicado "tirar privilégios" em nome da igualdade, eu descubro que você era menino. Eita!

E o pior, filho, é que essa cultura está tão enraizada que até quem se considera feminista, escorrega. Você já tem dezenas de carrinhos (e eu odeio essa cultura que transforma meios de transporte em  status social). E você não tem nenhuma boneca. Já tem vassoura, rodo e pá, mas nunca tem chance de usá-los corretamente porque eu insisto em arrumar a casa só quando você está dormindo (olha a incoerência, eu ainda estudo Montessori!!). Digo que cor não é problema, mas você não tem nenhuma roupa rosa.

Mas eu quero mudar o mundo. Quero um mundo onde você possa ser quem você é, filho, que sinta suas emoções sem medo, que não seja julgado pela cor da roupa ou pela profissão escolhida. Quero que você entenda que sua "piadinha inocente" mata. Entenda que as mulheres vão ter medo de você numa rua deserta à noite, pelo simples fato de você ser homem. Quero que entenda que nós mulheres não somos objetos, nem troféus, não somos feitas para "pegar", colecionar ou apenas para fazer você gozar.  Quero que entenda, se for hétero, que suas namoradas não são propriedades suas, que ciúme não é prova de amor, e que você não tem nenhum direito de definir, nem mesmo pedindo por favor, de que pessoas elas podem ser amigas, que roupas podem ou não usar, aonde podem ou não ir. E, se você for gay, que entenda que não é menos homem, nem menos valioso, nem menos importante. E que você é, sim, e sempre será, muito amado (ainda que eu tenha dificuldade de demonstrar isso).

Sim, filho, se depender de mim e do seu pai, você perderá muitos privilégios. Mas viverá num mundo bem melhor  por causa disso. E será mais feliz também. Por que quem perde com o machismo, acredite meu amor, não são só as mulheres.   


Vitória, 6 de março de 2017 - 1 ano e 9 meses

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