segunda-feira, 3 de julho de 2017

O dia em que a Batatinha me salvou

Postado por Mãe do André às 11:19
Bom dia, meu filho. Hoje eu preciso contar para você sobre um dia ruim. Um daqueles dias em que a gente percebe que falhou como mãe. Um dia em que eu não tive toda a paciência que eu precisava ter. Toda? Nem metade!! O dia em que você precisou me "salvar" e fez isso com maestria, graças à ajuda da Batatinha.

Foi na semana passada. Eu confesso que não acordei bem. Dormi tarde, você acordou cedo e eu tive um sono agitado, ainda por cima. Sei que você não tem culpa disso, mas tentar me justificar é inevitável. A professora da creche avisou que você estava morrendo de sono, mas que não havia dormido nada lá (o que é raro). Internamente, comemorei. Mais uma garantia que eu podia contar com seu soninho depois do almoço. Essa nova deliciosa rotina que você está estabelecendo e que tem me ajudado muito nessa nova fase cheia de coisas para fazer.

Pois bem. Fomos almoçar com a família e você de "farol baixo", coçando o olho, enjoadinho. E eu comemorando, cheia de expectativas, pensando em como eu precisava de uma tarde tranquila. Avaliando até se não valia a pena eu dormir junto dessa vez (coisa que não acontece há muitos meses). Achei mesmo que você iria dormir no carro quando fôssemos levar seu pai ao trabalho. Não dormiu. Tudo bem, pensei, vai ser como ontem: chegar em casa, dar água, fechar as cortinas do meu quarto, ninar e cantar no escurinho, colocar você na sua cama. Igualzinho a todos os outros dias, certo? Errado!

Lá se foram duas, três, cinco músicas e você nada de dormir. "Não acredito que vai ser 'modo hard' mesmo com esse sono todo!", pensei. O  "modo hard", filho, requer uma certa queda de braço e uma dose extra de paciência, mas era nítido que você estava com muito sono, precisava dormir, e eu estava disposta a comprar a briga e usar todas as armas para ter um tempinho mais tranquilo para mim. Sabe, filho, quando você não dá sinais claros de cansaço, eu nem insisto, nino só uns minutinhos para "tirar a prova dos nove" e, se você não dormir logo, parto para a brincadeira. Mas essa tarde foi tão confusa!

Você coçava o olho, deitava nos meus braços, colocava o dedinho na boca e se aninhava no meu colo - exatamente como sempre faz quando quer dormir. Chegava até a fechar os olhos de vez em quando. Por vários segundos. Ou então me encarava sereno, mas de olhão aberto - algo que você faz quando tenta resistir ao sono. Então, eu insistia. Cantava, ninava, andava de um lado para o outro no quarto. Nada! Mas aí você ficava revoltado, chorava, se debatia para sair do meu colo. Eu deixava você ficar na vertical, sem largar você, e explicava, como sempre: "você está com sono, meu filho. Mamãe vai ajudar você a dormir e você vai se sentir bem melhor depois". E aí, você voltava a deitar nos meus braços e a colocar o dedo na boca, sereno. Mas não dormia. Meus braços já estavam dormentes, minhas costas ardiam e você começou a me empurrar, sem chorar, como faz quando quer ir para a cama. Coloquei você na minha cama sem parar de cantar e fui fazendo carinho. Você despertou, sentou e começou a engatinhar, me chamando para brincar. Peguei novamente no colo. Você se revoltou. Gritou, chorou, até me machucou no processo. Respiro fundo. Várias vezes. Você não quer dormir é nada!!! Coloco você sentado na cama e penso em começar uma brincadeira. Mas aí você deita, chupa o dedo e fecha o olho. Eu deito do lado e tento fazer você dormir. Você se senta e se agita. Eu volto a pegar você no colo, você volta a se debater. Penso em desistir, você faz que vai dormir. AHHHHHHHHH!!!!!!!

Respiro fundo tantas vezes que perco o ritmo da música. Tento não explodir. Você pede para ir para a cama. Eu converso com você, deito do seu lado. Na horizontal e no escurinho, começo a cochilar. Você senta, deita, dá risada, fica quieto. Senta de novo, mete a testa na minha boca, chora enquanto eu grito de dor. Tenho vontade de chorar junto.

Mais de 45 minutos se passaram nessa briga de foice, nesse balé de malucos. Eu com dor de cabeça, sono, sem ter escovado os dentes depois do almoço, com as costas em brasa e os braços doendo. Quando percebo que minha tentativa de ninar você havia se transformado em sacudidas tão fortes que poderiam até machucar, paro imóvel no quarto sem saber o que fazer. Você chora revoltado e tenta escorregar para o chão, me dando algumas porradas no processo.

CHEEEEGAAAAA!!!! NÃO QUER DORMIR, ENTÃO NÃO DORME!! CANSEI!!! MAS VAI FICAR ENJOADO A TARDE TODA, JÁ VOU LOGO AVISANDO!!!! 

Com uma certa violência que me envergonho de lembrar, coloco você no seu quarto, fecho a porta, jogo uns brinquedos em volta e solto ríspida: "Quer brincar? Pronto, toma, brinca aí!!! Mas sem a mamãe, tá? Desculpa, filho, mas hoje não tem mamãe. Mamãe não dormiu, mamãe não está bem, mamãe vai descansar. MAMÃE NÃO VAI BRINCAR!"

Deito na sua cama, fecho os olhos e decido ignorar você solenemente. Você fica meio sem saber o que fazer, imóvel por alguns segundos, mas começa a brincar timidamente com os seus brinquedos. De vez em quando, engatinha até mim e eu, sem abrir os olhos, falo secamente: "agora é brincar sem a mamãe, sozinho". Ai, que triste é lembrar isso, mas eu estava muito "P da vida". Exausta! Não dava! Fui muito ríspida e grosseira. Um pouco violenta até. Bufando de raiva, chego a cochilar algumas vezes, tamanha a exaustão. Você até tenta me acordar, mas eu ignoro, resmungo e continuo imóvel.

Mas aí, você me cutuca, dizendo "exi, exi (esse)". Eu abro os olhos de má vontade e vejo você com o livro da Batatinha. Quando vê que eu  estou olhando, você abre um sorriso largo, coloca o livro no chão e vai passando as páginas até chegar na família de saguis. "Essi, exi", diz apontando para eles. Meu coração despedaçou!!!!!!

Para você entender, eu tenho que fazer uma pausa aqui e explicar um pouco sobre a Batatinha. Ela é uma cachorrinha fofa, de lacinho na cabeça, personagem principal de um livro espírita chamado "As aventuras de Batatinha". Você é alucinado por cachorros, André, fica enlouquecido sempre que vê um (e vale desenho, figurinha, estátua ou simplesmente ouvir um latido ao longe). Quando você bateu o olho na capa colorida do livro na livraria, sacudiu os bracinhos, latiu do seu  jeitinho (mais um "ô,ô" do que um "au, au", colocou a língua para fora imitando a respiração ofegante dos cachorros e apontava o livro sem parar. Não resisti, comprei o livro, ainda que ele claramente não fosse para a sua idade, pois tinha uma história grande e complicada.

Então, em casa, inventamos nosso modo personalizado de  "ler" a Batatinha. Vamos passando as páginas, apenas "legendando" as imagens e criando brincadeiras:

- Olha o cachorrinho segurando o pé! - e pegamos o seu pé
- Olha o outro cachorrinho de óculos! - e coloco a mão imitando um óculos na frente dos seus olhos
- Ai meu coco da Bahia, o cachorrinho bateu a cabeça! - e levamos a mão à cabeça
- Oh... tadinho do passarinho, caiu na água e precisa de ajuda! - e você solta um "ohhhh"
- Olha que passarinho bravo! Hum!!! - e colocamos a mão na cintura fazendo cara feia
- Olha a Batatinha! - e latimos juntos.
- Eba! Salvaram o passarinho e ele está cantando feliz! - e fazemos um "lá, lá, lá"

Aos poucos, você passou a "ler sozinho", repetindo a brincadeira: segura o pé, passa a página e coloca a mão na cabeça, passa a página e solta um "ohhh", etc... Sempre fazendo o gesto certo para cada imagem. Coisa mais linda do mundo!! O livro passou a fazer parte da nossa rotina diária. Você mesmo o pega na prateleira, me entrega e já vira de costas para mim, sorrindo, para que eu te coloque sentado no meu colo. E vai passando as páginas, fazendo os gestos e dando gargalhada com as brincadeiras. A sua preferida é quando aparece uma família de saguis: dois adultos, um com lacinho na cabeça para representar a fêmea, e um filhotinho na costas dessa fêmea. Eu leio: olha, uma família
Os macacos saguis do livro
de macacos! O papai macaco (e aponto para o desenho do macho), a mamãe macaco (e aponto para a de lacinho) e o macaquinho... (aponto para o filhote fazendo uma pausa dramática) GRUDADINHO NA MAMÃE, GRUDADINHO NA MAMÃE (e te abraço forte, sacudindo de leve você de um lado para o outro). Você morre de rir e começa a dar risada até antes, quando eu aponto para o "papai macaco". Na página final do livro, quando aparecem juntos todos os animais/personagens, você sempre aponta para a família de saguis primeiro, já sorrindo e colocando os bracinhos no meio das pernas, facilitando o meu "ataque". Que delícia!! Amasso mesmo!!! Com gosto! E enchendo de beijinhos depois.

Pois bem, naquele dia de fúria, quando abro um dos olhos com raiva e má vontade, só para ter certeza que você não estava fazendo nada que fosse risco de vida, vejo você apontando para os saguis freneticamente, repetindo "essi, essi". Com o coração apertado, abro bem os dois olhos e me sento para ter certeza do que estou vendo. Você não estava só me chamando para brincar, não estava apenas tentando me convencer de ler um livro. Você procurou intencionalmente AQUELA página, só parou de folhear o livro quando chegou naquela página, e fazia um esforço de coordenação motora enorme para tentar apontar o dedinho com precisão não apenas para a família de saguis, mas especificamente para o macaquinho, o filhote nas costas da mãe!! VOCÊ QUERIA O "GRUDADINHO NA MAMÃE"! Você queria esse momento de aconchego e colo. Você estava me pedindo um abraço!!!

Meus olhos se encheram de lágrimas, de remorso e de gratidão por você, filho. Você me desarmou. Eu baixei a guarda. A raiva sumiu. Eu te abracei forte, tão forte!! Enchi você de beijos, pedi desculpas e fomos ler o livro, comigo sentada no chão e você no meu colo. Você sorriu um sorriso largo e empolgado. E eu enxugava as lágrimas para elas não escorrerem pelo rosto. A Batatinha nos salvou, igualzinho ao passarinho da história. Você me salvou, André, e nos deu uma tarde deliciosa. Obrigada!

Vitória, 29 de agosto e 28 de setembro de 2016 - 1 ano e 2-3 meses

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